Por: Belarmino Van-Dúnem
No início da década de 1990, o mundo, paradoxalmente, celebrou o enterro do comunismo e o começo de um novo mundo, onde a liberdade e a paz passavam a fazer parte de todas as sociedades.
Vários autores têm manifestado reticências e chamado à atenção para o caos que se estava a criar na arena internacional, onde a diversidade cultural é uma realidade, mas as clivagens sociais, económicas, políticas e estruturais são, cada vez mais, marcantes.
Jacques Lesourne e Bernard Lecomte (1991) chamaram a atenção para o facto do “presente não se limitar a uma participação no enterro porque as mortes do comunismo são múltiplas, incertas e escalonadas no tempo. O futuro contém, tanto na Europa de Leste como no resto do mundo, outras evoluções além de um idílico avançar para a liberdade e a paz”.
Outros autores como Francis Fukuyama (1992) com o seu artigo “o fim da história e o último homem”, eram mais optimistas e peremptórios ao anunciar que as dinâmicas políticas se tinham esgotado e o liberalismo democrático se afigurava como a única alternativa para os Estados. Portanto, a democracia era a alternativa para todas as sociedades, facto que criou as condições conjunturais para o início do fundamentalismo democrático.
Se teoricamente cada autor procurava dar o seu melhor em nome da democracia, os políticos que têm na sua posse os recursos materiais e humanos entraram em êxtase e colocaram a máquina ao seu dispor para expandir a democracia neo-liberal em todo espaço geográfico.
O fundamentalismo democrático acontece porque há, por maioria de razão, uma tendência para se valorizar mais o processo em si do que as finalidades de um regime democrático numa determinada sociedade. A comunidade internacional Ocidental, desde o fim da guerra-fria, tenta, a todo o custo, expandir o regime democrático, implementado nos seus territórios sem levar em conta as especificidades locais, regionais ou continentais. O objectivo é homogeneizar a política, a tal ponto que qualquer outra forma de organização seja considerada anacrónica, fora do normal e um alvo a abater.
O continente africano tem sido um exemplo pouco abonatório para a implementação do sistema democrático ocidentalizado. Durante a década de 1990, a maior parte dos Estados africanos sentiu-se na obrigação de implementar o regime democrático, com a promessa de apoio da comunidade internacional, que, por sua vez, radicalizou o seu posicionamento. Durante a disputa para o domínio geopolítico no sistema internacional, os parceiros não eram escolhidos com base em critérios éticos ou morais, não importava se eram ditaduras, monarquias, oligarquias, democracias ou regimes com mono partidarismo, tudo e todos serviam. Na maior parte dos casos, com recurso a meios que até ao momento constituem segredo de Estado pela forma pouco ética como foram praticados, desde os assassinatos de grandes figuras do continente, até a pilhagem das riquezas nacionais sem qualquer dividendo para as populações nativas. As justificações vão variando, todos argumentos servem para justificar o suposto atraso do continente africano relativamente às restantes regiões do mundo. Alguns argumentos são surreais, como a história contada por René Dumont no livro “Democracie pour l´Afrique”, em que um famoso economista de Taiwan, quando questionado sobre o subdesenvolvimento de África, encolhendo os ombros, respondeu: “Esses africanos não conheceram Confúcio”, como se a filosofia confucionista tivesse alguma base para o desenvolvimento com a matriz neo-liberal que caracteriza as economias do chamado milagre asiático cujo deus foram os Estados Unidos, que deslocaram fundos e pessoal para o desenvolvimento daquela região. Aliás, para quem estuda as questões da evolução da economia e da democracia sabe que a filosofia confucionista constitui um obstáculo intransponível à liberdade. A China, por exemplo, teve que tomar medidas radicais para chegar onde está hoje. Não mudou o regime político, mas abandonou a filosofia que caracterizava o funcionalismo público, eliminando toda a elite confucionista que dominava o poder na altura, portanto o respeito cego, destemido, incondicional e pouco aconselhável pelo chefe que os confucionistas ensinavam não é o caminho certo para o desenvolvimento e muito menos para a democracia.
Não tenho lido muitos exemplos de resquícios de democracia nas sociedades tradicionais asiáticas, elas são apresentadas como sociedades expansionistas, que tiveram grandes sucessos na conquista de outros povos, dentro e fora da sua região. Aliás, os maiores Estados da antiguidade podem ser encontrados na Ásia.
No continente africano há exemplos de democracias que fazem parte da organização política das sociedades tradicionais. Essas práticas existiam antes da chegada dos colonos europeus.
O professor camaronês Michel Moinou (2001), no estudo sobre sistemas políticos nas sociedades tradicionais africanas, apresentou o exemplo dos reinos Agni-Baoulé na Costa do Marfim, onde a unidade social fundamental é a família, que se funda no conceito de família alargada e na territorialidade, o mesmo acontecendo com a maior parte dos povos africanos.
Portanto, a pertença parental ou o local geográfico está estritamente ligado à residência real, os chefes das subtribos, os chefes das fracções da tribo principal e no cume da pirâmide, que é descentralizada, o rei. Este é o garante das terras dos ancestrais e o comandante supremo do Exército. Os chefes da vila são eleitos pelo conselho dos chefes de família e estes, por sua vez, elegem os chefes da tribo que fazem parte do conselho real. Com excepção de Sua Majestade, nenhuma função é perene.
Há aqui um sistema claro de democracia, onde a probabilidade de contestação é quase nula porque a legitimidade é natural. Ao contrário do sistema da democracia multipartidária, em que o voto é atribuído a cidadãos que, em muitos casos, estão mais interessados em resolver os problemas pessoais do que a dedicarem-se aos que depositaram neles confiança. Portanto, os sistemas eleitorais devem estar ¬directamente ligados ao contexto e não acompanhar o argumento normativo linear que tem caracterizado o debate nas nossas sociedades, onde alguns indivíduos são investidos com convincentes argumentos escolásticos para impor sistemas eleitorais copiados de outras dimensões e impostos ao continente africano.
A base dos argumentos é a teoria reducionista, recorrem a Maurice Duverger, que fez os estudos sobre sistemas eleitorais na Europa e nos Estados Unidos, nos princípios do século passado, numa conjuntura que pouco ou nada tem de semelhante com os Estados africanos.
Mas dentro do limite dos debates que vamos fazendo, estes argumentos têm feito escola, tudo em nome do fundamentalismo democrático (Dieter Nohlen 2007).
A democracia foi transformada num valor em si. Deixou de ser uma forma de participação no dinamismo político da sociedade onde o cidadão está inserido para passar a fim último. O radicalismo é tal que assistimos, todos os dias, a situações caricatas: em Março de 2010, quando os iraquianos foram chamados a votar, houve vários ataques que dizimaram dezenas de vidas humanas. Os eleitores exerceram o seu direito de voto debaixo de tiros, mas ouvimos o Presidente Barack Obama elogiar o povo iraquiano por ter ido às urnas, dizendo que era um povo heróico por ter ido votar mesmo com a violência que se verificou. Portanto, o acto de votar sobrepõe-se à vida das pessoas.
No continente africano, os exemplos são ainda mais caricatos. Nos Estados onde há grupos rebeldes armados, a comunidade internacional impõe eleições a todo custo, ignorando alguns factores determinantes para um processo eleitoral bem sucedido. Os grupos armados raramente entregam as armas, mas fecham-se os olhos e manda-se toda gente votar. A população está mal informada e desconhece as vantagens e desvantagens do acto de votar, mas isso não é importante, podem votar mesmo assim. Há uma grande parte dos cidadãos que não possui documentos de identidade e alguns estrangeiros passam por cidadãos nacionais. Não faz mal porque mais tarde esse problema é resolvido. Quando o processo cria desentendimentos, o argumento é que todos aceitaram as condições e devem aceitar os resultados, justos ou não. Quem não aceitar entra na lista das pessoas perigosas e passa de democrata a ditador.
Mas o que marca mais são os actos eleitorais que ocorreram na Costa do Marfim e no Sul do Sudão. No primeiro caso, depois de alguns anos de polémica em que Gbagbo não conseguiu convencer a comunidade internacional a desarmar os rebeldes que ocupam o norte do país. Finalmente, em Novembro de 2010, realizou-se a segunda volta das eleições presidenciais. Quando Gbagbo esperava ter a oportunidade de recorrer ao Conselho Constitucional foi surpreendido com o coro, em uníssono, da comunidade internacional a apelar à retirada, já sem direito ao recurso conforme consagra a lei eleitoral daquele país.
Alguns países como a França e os Estados Unidos da América chegaram a oferecer, outros deram garantias de não interporem processos judiciais contra o Presidente Lourent Gbabo. Tudo isso em nome de um abandono voluntário do poder, sem recurso ou direito a reclamar uma possível vitória, sobrepondo a decisão de uma instância inferior, a Comissão Eleitoral Interdependente, à superior, o Conselho Constitucional.
Portanto, o mote segundo o qual em democracia é necessário respeitar as regras e as instituições criadas para a sua regulamentação só é válido quando os interesses dos poderosos não são postos em causa.
No caso do Referendo para a autodeterminação do Sul do Sudão, pode afirmar-se, sem grandes constrangimentos, que estavam criadas todas as condições para que o processo corresse mal e não foi preciso muito tempo para alguns grupos reclamarem a anulação do pleito. No primeiro dia, as deficiências vieram à tona. O primeiro constrangimento esteve relacionado com as limitações logísticas, pois muitas assembleias de voto não tinham material suficiente e algumas não chegaram a abrir. Por outro lado, o sistema de votação foi um dos mais complexos que alguma vez já se organizou em África e talvez no mundo. Criou-se um sistema em que os eleitores tiveram de votar os representantes locais, regionais e nacionais, além das legislativas e parlamentares.
No total, tiveram de colocar 12 boletins de voto em 12 urnas diferentes, o próprio candidato do maior parido do Sul, o Movimento de Libertação do Povo do Sudão, General Salva Kiir, enganou-se e colocou um dos boletins de voto na urna errada, tendo sido respeitosamente avisado pelo presidente da assembleia de voto. Imaginemos as dificuldades do restante da população que, segundo as estatísticas, é 93 por cento analfabeta. Mas o antigo Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, o próprio Barack Obama e a maior parte da comunidade internacional já se manifestaram satisfeitos pela forma como decorreu o escrutínio. Vamos aguardar pelas consequências para observarmos a resposta da comunidade internacional.
A cegueira pela democracia é tal que, mesmo quando os eleitores, por razões de força maior, se furtam ao transcendente dever cívico de votar, os democratas do multipartidarismo encontram sempre uma justificação, mesmo que seja contra a natureza, que não pode roubar o que de mais sagrado existe no mundo hodierno, o voto na urna. José Saramago, no livro “Ensaio sobre a Lucidez”, ilustra bem, de forma jocosa, como se justifica em democracia. O Presidente da Assembleia de Voto, quando questionado sobre a eventual vitória da abstenção nas eleições municipais por causa do temporal que se verificava no dia do escrutínio respondeu: “Prefiro ver as coisas com optimismo, ter uma visão positiva da influência da meteorologia no funcionamento dos mecanismos eleitorais, bastará que não chova durante a tarde para que consigamos recuperar o que o temporal desta manhã tentou roubar-nos. O jornalista saiu satisfeito, a frase era bonita, poderia dar, pelo menos, um subtítulo de reportagem”. Portanto, demagogia e democracia não só rimam como parecem ser complementares.
No início da década de 1990, o mundo, paradoxalmente, celebrou o enterro do comunismo e o começo de um novo mundo, onde a liberdade e a paz passavam a fazer parte de todas as sociedades.
Vários autores têm manifestado reticências e chamado à atenção para o caos que se estava a criar na arena internacional, onde a diversidade cultural é uma realidade, mas as clivagens sociais, económicas, políticas e estruturais são, cada vez mais, marcantes.
Jacques Lesourne e Bernard Lecomte (1991) chamaram a atenção para o facto do “presente não se limitar a uma participação no enterro porque as mortes do comunismo são múltiplas, incertas e escalonadas no tempo. O futuro contém, tanto na Europa de Leste como no resto do mundo, outras evoluções além de um idílico avançar para a liberdade e a paz”.
Outros autores como Francis Fukuyama (1992) com o seu artigo “o fim da história e o último homem”, eram mais optimistas e peremptórios ao anunciar que as dinâmicas políticas se tinham esgotado e o liberalismo democrático se afigurava como a única alternativa para os Estados. Portanto, a democracia era a alternativa para todas as sociedades, facto que criou as condições conjunturais para o início do fundamentalismo democrático.
Se teoricamente cada autor procurava dar o seu melhor em nome da democracia, os políticos que têm na sua posse os recursos materiais e humanos entraram em êxtase e colocaram a máquina ao seu dispor para expandir a democracia neo-liberal em todo espaço geográfico.
O fundamentalismo democrático acontece porque há, por maioria de razão, uma tendência para se valorizar mais o processo em si do que as finalidades de um regime democrático numa determinada sociedade. A comunidade internacional Ocidental, desde o fim da guerra-fria, tenta, a todo o custo, expandir o regime democrático, implementado nos seus territórios sem levar em conta as especificidades locais, regionais ou continentais. O objectivo é homogeneizar a política, a tal ponto que qualquer outra forma de organização seja considerada anacrónica, fora do normal e um alvo a abater.
O continente africano tem sido um exemplo pouco abonatório para a implementação do sistema democrático ocidentalizado. Durante a década de 1990, a maior parte dos Estados africanos sentiu-se na obrigação de implementar o regime democrático, com a promessa de apoio da comunidade internacional, que, por sua vez, radicalizou o seu posicionamento. Durante a disputa para o domínio geopolítico no sistema internacional, os parceiros não eram escolhidos com base em critérios éticos ou morais, não importava se eram ditaduras, monarquias, oligarquias, democracias ou regimes com mono partidarismo, tudo e todos serviam. Na maior parte dos casos, com recurso a meios que até ao momento constituem segredo de Estado pela forma pouco ética como foram praticados, desde os assassinatos de grandes figuras do continente, até a pilhagem das riquezas nacionais sem qualquer dividendo para as populações nativas. As justificações vão variando, todos argumentos servem para justificar o suposto atraso do continente africano relativamente às restantes regiões do mundo. Alguns argumentos são surreais, como a história contada por René Dumont no livro “Democracie pour l´Afrique”, em que um famoso economista de Taiwan, quando questionado sobre o subdesenvolvimento de África, encolhendo os ombros, respondeu: “Esses africanos não conheceram Confúcio”, como se a filosofia confucionista tivesse alguma base para o desenvolvimento com a matriz neo-liberal que caracteriza as economias do chamado milagre asiático cujo deus foram os Estados Unidos, que deslocaram fundos e pessoal para o desenvolvimento daquela região. Aliás, para quem estuda as questões da evolução da economia e da democracia sabe que a filosofia confucionista constitui um obstáculo intransponível à liberdade. A China, por exemplo, teve que tomar medidas radicais para chegar onde está hoje. Não mudou o regime político, mas abandonou a filosofia que caracterizava o funcionalismo público, eliminando toda a elite confucionista que dominava o poder na altura, portanto o respeito cego, destemido, incondicional e pouco aconselhável pelo chefe que os confucionistas ensinavam não é o caminho certo para o desenvolvimento e muito menos para a democracia.
Não tenho lido muitos exemplos de resquícios de democracia nas sociedades tradicionais asiáticas, elas são apresentadas como sociedades expansionistas, que tiveram grandes sucessos na conquista de outros povos, dentro e fora da sua região. Aliás, os maiores Estados da antiguidade podem ser encontrados na Ásia.
No continente africano há exemplos de democracias que fazem parte da organização política das sociedades tradicionais. Essas práticas existiam antes da chegada dos colonos europeus.
O professor camaronês Michel Moinou (2001), no estudo sobre sistemas políticos nas sociedades tradicionais africanas, apresentou o exemplo dos reinos Agni-Baoulé na Costa do Marfim, onde a unidade social fundamental é a família, que se funda no conceito de família alargada e na territorialidade, o mesmo acontecendo com a maior parte dos povos africanos.
Portanto, a pertença parental ou o local geográfico está estritamente ligado à residência real, os chefes das subtribos, os chefes das fracções da tribo principal e no cume da pirâmide, que é descentralizada, o rei. Este é o garante das terras dos ancestrais e o comandante supremo do Exército. Os chefes da vila são eleitos pelo conselho dos chefes de família e estes, por sua vez, elegem os chefes da tribo que fazem parte do conselho real. Com excepção de Sua Majestade, nenhuma função é perene.
Há aqui um sistema claro de democracia, onde a probabilidade de contestação é quase nula porque a legitimidade é natural. Ao contrário do sistema da democracia multipartidária, em que o voto é atribuído a cidadãos que, em muitos casos, estão mais interessados em resolver os problemas pessoais do que a dedicarem-se aos que depositaram neles confiança. Portanto, os sistemas eleitorais devem estar ¬directamente ligados ao contexto e não acompanhar o argumento normativo linear que tem caracterizado o debate nas nossas sociedades, onde alguns indivíduos são investidos com convincentes argumentos escolásticos para impor sistemas eleitorais copiados de outras dimensões e impostos ao continente africano.
A base dos argumentos é a teoria reducionista, recorrem a Maurice Duverger, que fez os estudos sobre sistemas eleitorais na Europa e nos Estados Unidos, nos princípios do século passado, numa conjuntura que pouco ou nada tem de semelhante com os Estados africanos.
Mas dentro do limite dos debates que vamos fazendo, estes argumentos têm feito escola, tudo em nome do fundamentalismo democrático (Dieter Nohlen 2007).
A democracia foi transformada num valor em si. Deixou de ser uma forma de participação no dinamismo político da sociedade onde o cidadão está inserido para passar a fim último. O radicalismo é tal que assistimos, todos os dias, a situações caricatas: em Março de 2010, quando os iraquianos foram chamados a votar, houve vários ataques que dizimaram dezenas de vidas humanas. Os eleitores exerceram o seu direito de voto debaixo de tiros, mas ouvimos o Presidente Barack Obama elogiar o povo iraquiano por ter ido às urnas, dizendo que era um povo heróico por ter ido votar mesmo com a violência que se verificou. Portanto, o acto de votar sobrepõe-se à vida das pessoas.
No continente africano, os exemplos são ainda mais caricatos. Nos Estados onde há grupos rebeldes armados, a comunidade internacional impõe eleições a todo custo, ignorando alguns factores determinantes para um processo eleitoral bem sucedido. Os grupos armados raramente entregam as armas, mas fecham-se os olhos e manda-se toda gente votar. A população está mal informada e desconhece as vantagens e desvantagens do acto de votar, mas isso não é importante, podem votar mesmo assim. Há uma grande parte dos cidadãos que não possui documentos de identidade e alguns estrangeiros passam por cidadãos nacionais. Não faz mal porque mais tarde esse problema é resolvido. Quando o processo cria desentendimentos, o argumento é que todos aceitaram as condições e devem aceitar os resultados, justos ou não. Quem não aceitar entra na lista das pessoas perigosas e passa de democrata a ditador.
Mas o que marca mais são os actos eleitorais que ocorreram na Costa do Marfim e no Sul do Sudão. No primeiro caso, depois de alguns anos de polémica em que Gbagbo não conseguiu convencer a comunidade internacional a desarmar os rebeldes que ocupam o norte do país. Finalmente, em Novembro de 2010, realizou-se a segunda volta das eleições presidenciais. Quando Gbagbo esperava ter a oportunidade de recorrer ao Conselho Constitucional foi surpreendido com o coro, em uníssono, da comunidade internacional a apelar à retirada, já sem direito ao recurso conforme consagra a lei eleitoral daquele país.
Alguns países como a França e os Estados Unidos da América chegaram a oferecer, outros deram garantias de não interporem processos judiciais contra o Presidente Lourent Gbabo. Tudo isso em nome de um abandono voluntário do poder, sem recurso ou direito a reclamar uma possível vitória, sobrepondo a decisão de uma instância inferior, a Comissão Eleitoral Interdependente, à superior, o Conselho Constitucional.
Portanto, o mote segundo o qual em democracia é necessário respeitar as regras e as instituições criadas para a sua regulamentação só é válido quando os interesses dos poderosos não são postos em causa.
No caso do Referendo para a autodeterminação do Sul do Sudão, pode afirmar-se, sem grandes constrangimentos, que estavam criadas todas as condições para que o processo corresse mal e não foi preciso muito tempo para alguns grupos reclamarem a anulação do pleito. No primeiro dia, as deficiências vieram à tona. O primeiro constrangimento esteve relacionado com as limitações logísticas, pois muitas assembleias de voto não tinham material suficiente e algumas não chegaram a abrir. Por outro lado, o sistema de votação foi um dos mais complexos que alguma vez já se organizou em África e talvez no mundo. Criou-se um sistema em que os eleitores tiveram de votar os representantes locais, regionais e nacionais, além das legislativas e parlamentares.
No total, tiveram de colocar 12 boletins de voto em 12 urnas diferentes, o próprio candidato do maior parido do Sul, o Movimento de Libertação do Povo do Sudão, General Salva Kiir, enganou-se e colocou um dos boletins de voto na urna errada, tendo sido respeitosamente avisado pelo presidente da assembleia de voto. Imaginemos as dificuldades do restante da população que, segundo as estatísticas, é 93 por cento analfabeta. Mas o antigo Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, o próprio Barack Obama e a maior parte da comunidade internacional já se manifestaram satisfeitos pela forma como decorreu o escrutínio. Vamos aguardar pelas consequências para observarmos a resposta da comunidade internacional.
A cegueira pela democracia é tal que, mesmo quando os eleitores, por razões de força maior, se furtam ao transcendente dever cívico de votar, os democratas do multipartidarismo encontram sempre uma justificação, mesmo que seja contra a natureza, que não pode roubar o que de mais sagrado existe no mundo hodierno, o voto na urna. José Saramago, no livro “Ensaio sobre a Lucidez”, ilustra bem, de forma jocosa, como se justifica em democracia. O Presidente da Assembleia de Voto, quando questionado sobre a eventual vitória da abstenção nas eleições municipais por causa do temporal que se verificava no dia do escrutínio respondeu: “Prefiro ver as coisas com optimismo, ter uma visão positiva da influência da meteorologia no funcionamento dos mecanismos eleitorais, bastará que não chova durante a tarde para que consigamos recuperar o que o temporal desta manhã tentou roubar-nos. O jornalista saiu satisfeito, a frase era bonita, poderia dar, pelo menos, um subtítulo de reportagem”. Portanto, demagogia e democracia não só rimam como parecem ser complementares.